1300 Leo

Em pleno ciclo do astrológico Leão, Leo (nardo) Pereira visitou Lisboa para um almoço Pop Up, com produção da dupla Amuse Bouche.


Lugar escolhido, a 1300 Taberna, a deixar metade da mesa a discutir arquitectura, a beleza e o abandono de grande parte do nosso património industrial, a reabilitação urbana que não existe, existe mal ou anda a pé-coxinho. São assim alguns espaços: guardam do passado o mistério do que por nós não foi vivido, enchem o presente de bons fantasmas, sugerem, enleiam, à sua maneira provocam o futuro.


Conversa que foi sendo contaminada pela expectativa criada pela leitura do menu, também ele contaminado pelo futuro que o chef defende: regressado a Portugal, depois de 4 anos no dinamarquês NOMA, adepto confesso dos princípios da Nova Cozinha Nórdica, considera chegado o tempo de vivenciarmos uma cozinha mais ligada aos produtos locais, biologiamente produzidos, naturalmente preparados com técnicas que potenciam os seus sabores, conducentes a preparações mais leves, mais harmoniosas.


Refeição de prazeres não emocionais, de estímulos mentais, de questionamento, de interrogações, de propostas fora das nossas memórias, a fazer reflectir. Combinações e casamentos (serão eles a mesma coisa?), modos diversos de confeccionar, elementos em pratos de gosto básico diverso do habitual, a fazer-nos parar a meio e perdermo-nos num fio de pensamento que partia desse desafio e, de pergunta em resposta, de espanto em concordância, nos deixava de gesto a meio e olhar distante.


Por exemplo: poderá uma refeição, quase despida da voluptuosidade da carne, provocar os nossos, viciados em proteina, sentidos?  Poderá a satisfação produzida ser tão forte que se transforme em prazer?


O primeiro prato sussurrou algo: cenouras num equilíbrio inteligente entre as primeiras maciezas do cozido, o açúcar a aparecer, e o ainda crocante, um subjacente tom de coentros, a fruta por mim mais sugerida que sentida.

Pausa. Olhares. Ainda insegurança quanto às primeiras impressões.

Logo a seguir, uma dissertação de pepino, suas formas e sabores, a procura - primeira procura - de caminhos de preparação/apresentação alternativos. Alguém comenta o uso das pevides. A temperatura - muito baixa - surpreende-me e eu aceito-a, com prazer, como contraponto bem vindo à untuosidade do azeite, com o que me parece ser uma infusão de eucalipto o qual, no nariz me pareceu bem mas que ficou um tudo nada intrusivo em excesso quando desceu ao palato. As ostras surgiram sob o pepino, quase envergonhadas pela subtileza do sabor e do perfume, depois do confronto com o eucalipto.

É legítimo agregar estas formas de floresta e mar? É um desperdício subjugar assim a nobreza da ostra? Onde aplicar este puré de pepino?


Depois, acelga e fígado de pato, a demonstração de que é possível bem aproveitar o que muitos desdenham, no caso os caules desta hortaliça. O estragão demasiado presente para quem, como eu, não morre de amores pelo amor de muito francês, foi o pequeno senão de um prato de equilíbrios, de pequenas provocações (por onde andará o fígado? preparado como?), de lento e guloso saborear, macio, untuoso, delicioso. Um primeiro momento - pequeno, ainda - de exaltação do palato, de transformação da satisfação racional em... prazer.


Flores de courgette e ovas: simplicidade de apresentação; duas cores, duas geometrias, novamente o efeito matriosca, sabor dentro de sabor - como soube bem entreter a língua com as diversas texturas, rolar, sobre ela, as pequenas esferas presentes no molho - leveza mas também consistência. O prazer num crescente. Formoso e bem seguro.


E, depois, uma brincadeira, acentuada pela troca da ordem no menu, jogo entre o olhar e a realidade, mente traída pela aparência : o osso, a côr, o molho... (uma costeleta? com este formato?) afinal uma crépinette vegetariana, beringela envolta na crépine, ou redanho, a camada de gordura que envolve as vísceras do porco e que lhe deu uma subtil sugestão carnal. Contentamento mais racional que emocional, este perturbado por ver fugir a proteína sugerida, um certo arrefecimento do entusiasmo, ainda que tirando o chapéu à proeza prestidigitadora.


Animava-se a conversa, cruzava a mesa de zonas de claro e escuro a luz zenital e zenital foi o prato chegado: pura porn food.


Feijão, tutano e colagénio de bacalhau, anunciava o menu e só a soma dos ingredientes era promessa de um Olimpo a instalar-se entre nós. Ambrósia sob duas formas (e perdoe-se a vulgarização, já que ambrósia é superlativo único, conjugal e acima de comparações terrenas...) qual delas a mais escabrosamente sensual, o tutano e a sua untuosidade a fundir-se na língua, no palato, nos olhos cerrados, no sorriso beatífico, e o colagénio do nosso teleósteo favorito, talvez mais subtil mas não menos poderoso... A apresentação primeiro a prometer, com a taça artesanal, depois a fazer desconfiar (beldroegas? hum...) - mais um ponto para a cozinha - para logo insistir na descoberta. Ervas e colagénio a começarem bem, a folha da beldroega com a resistência própria a contrariar a natural serenidade da emoção, os sabores sem discussão, logo revelando o feijão (que variedade é esta - não me parece habitual...?) (Borlotti, viríamos a saber depois) e, imperial, o tutano.

Como começar por explicar esta descida ao fundo da memória genética, a essa rusticidade que alimentou antepassados, prato para os de poucos meios, mas com energia suficiente para lavrar um campo, arrotear um terreno, vindimar uma quinta, que é a combinação entre estes dois? A rugosidade e o gosto primevo, um prato verdadeiramente gastrossexual.


E, depois, só o mudar de página seria possível, o perfeito crescimento da parte salgada levado a bem rematado fim. Sobremesas realizadas com a colaboração do pasteleiro Carlos Fernandes, em Lisboa, depois de dois anos com Martín Berasategui.

Primeiro, ameixa fermentada por uma semana, encapsulada em cera de abelha, servida gelada. (Atraente, esta ligação entre o acre e o frio, duas sensações incómodas atenuadas pelo sabor do fruto e embelezadas pela doçura da amêndoa que, em creme, lacrimejava no centro.


Essencial, primordial, cozinha na linha da frente, a buscar no fundo dos gestos uma nova contemporaneidade.


Pepino, iogurte, azeite casam-se dois a dois mas casar-se-ão em trio? Granitado a ferir as sensíveis gengivas, apaziguadas pelo gelado de iogurte, com o sabor bem marcado, não sem o nectar de alperce fermentado, servido junto, voltar a agitar os palatos postos em descanso, acre alacridade. Quanto ao azeite, ficou a experiência, para mim a ser excessiva a sua presença untuosa e sabor impositivo. Gostos...



Poderão as endívias apresentar-se numa sobremesa sem afectar as expectativas? Como se integrarão a sua textura e o seu gosto?

A esta dupla e prévia questão respondeu o prato seguinte, de um equilíbrio acima de reticências e essa descoberta vocação do vegetal para aventuras doceiras. Mistério não esclarecido - porque esquecido de perguntar - o do fluorescente líquido amarelo (à base de curcuma?), fonte de algumas graças...


E com graça se terminou, com macarons de farinha de bolota com recheio de toucinho fumado, demonstração desta era de fronteiras esbatidas e certezas esfumadas.


Última palavra para os vinhos servidos, três verdes biológicos Solar de Merufe. Admitindo a pouca dimensão do meu saber, que pode ver presenças que não existem ou imaginar ausências que não serão significativas, pareceram-me propostas que, de algum modo, ficaram aquém da proposta gastronómica.

De um modo genérico porque, a opção biológica, a ser levada ao extremo de nada tratar, nada condicionar e, principalmente, nada conduzir, no desenvolvimento do vinho , acaba por criar produtos que são a antítese da sua natureza: coisas feitas pelo homem. Os defeitos, a existirem, são isso mesmo - defeitos - e não, por ocasionais ou aleatórios, qualidades.

Depois, mais particularmente, o Vinhão pareceu-me pouco "espesso"para o casamento com, principalmente, o prato do feijão e tutano.

No entanto, o Loureiro 2010 e a sua harmonização "apareceram-me" bem, com capacidade para sublinhar e não para substituir.

Parabéns, apesar de tudo, para a disponibilidade e para o risco assumido pela Garrafeira Bem Saber, proponentes e fornecedores das escolhas vínicas. Com o manifesto desejo de disponibilizar, aos consumidores de Lisboa, vinhos de pequenos produtores e reduzidas produções, merecem todos os encómios e visitas.


Terminando: boa jornada gastronómica, bem conseguida introdução ao mundo de Leonardo Pereira e curiosidade a pedir mais, uma expedição mais demorada ao Areias do Seixo, onde, diariamente, oficia.

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