É f'esquinho , o seu peixe?

Portugal tem o melhor peixe do mundo!, gostamos nós de dizer e orgulhosos ficamos quando alguém, vindo de fora, no-lo indica, entre o olhar guloso e o beatífico sorriso do antes e depois de uma refeição preenchida com qualquer uma das variadas espécies que nos enchem os olhos nas bancas dos mercados e o nariz nas ruelas castiças de grelhadores em plena função.


Temos o melhor peixe do mundo? Talvez - como slogan turístico é eficaz e coerente com o prazer com que os nossos visitantes o degustam.

Temos - isso de certeza - peixe a que a dieta dos mares da nossa Zona Económica Exclusiva confere um sabor único, excepcional e que, muito mais facilmente do que na maioria dos países europeus, é disponibilizado a preços acessíveis, tanto aos leais cidadãos que ainda não emigraram, como - e ainda mais - a todos aqueles que nos visitam.

No que ao nosso peixe diz respeito, a dúvida não é pois a sua qualidade intrínseca. Importante é saber o que lhe acontece no pós-pesca e no pós-compra. Deste, dos modos de preparação, confecção e apresentação, falarei noutro dia. Hoje, dedico-me à janela temporal que decorre entre a retirada do mar e a chegada ao saco do consumidor, esse período de trevas - apesar das luminárias legislativas, de sombras - apesar da clareza comunitária, de omissões - apesar das presenças fiscalizadoras.

Permita-se-me um pequeno intróito esclarecedor.

Nos peixes, a degradação post-mortem é causada pelo efeito combinado de reacções químicas decorrentes da actividade de enzimas endógenas e do crescimento bacteriano. Por terem uma actividade máxima à temperatura do habitat do seu hospedeiro (que pode ser tão baixo quanto os 4ºC) as enzimas digestivas só são desactivadas a temperaturas inferiores – por isso se acondiciona o peixe fresco em gelo.



Uma vez que a maior parte das enzimas existem nas guelras e nas vísceras, a remoção destas ajudará a prevenir a degradação da peça. No entanto, como o grande Tomoaki Kanazawa explicou muito bem explicado a quem o quis ouvir (e foram muitos!), na sua apresentação do Peixe em Lisboa, para um japonês esta remoção não é suficiente, sendo mandatório - sob pena de rejeição por parte dos consumidores - retirar de imediato todo o sangue de modo a que as bactérias nele presentes não afectem as qualidades da carne e, por outro lado, seja atrasado o processo de degradação.

O processo de degradação, progressivo e gradual, pode-se dividir em três fases - ante rigor mortis, rigor mortis e post rigor mortis.

Na primeira, de curta duração (geralmente de algumas horas), o músculo ainda se apresenta flexível e elástico. À medida que o ATP se vai esgotando e os iões cálcio vão aumentando no sarcoplasma, as proteínas, actina e miosina, vão-se contraindo irreversivelmente, tornando o músculo rígido, o que caracteriza o estado de rigor mortis. Este estado termina, de algumas horas até um dia depois, com a recuperação da flexibilidade devido à acção das enzimas presentes no tecido muscular.

(Fonte: aqui)
O tempo destas diversas fases varia de espécie para espécie e é afectado por factores vários como a dimensão e a condição do pescado, a temperatura do meio em que este é colocado e o modo de manipulação do mesmo.

Peixe em Lisboa 2013: uma cavala com poucas horas de morte, em pleno rigor mortis
O que verificamos neste país à beira-mar plantado, nesta terra de glorioso pescado, neste recanto gastronómico de tão louvado peixe, neste membro da Comunidade Europeia cuja principal ocupação é, desde há muito, o acto legislativo de protecção, controlo e normalização de todo e qualquer pormenor da vida dos seus cidadãos?

Que, no barco, o peixe nunca é sangrado nem, creio eu, eviscerado.



Que a conservação em gelo, imediatamente após a captura, se não é um mito generalizado, é uma prática... com excepções.



Que a comercialização do mesmo em boas condições de conservação é, mesmo nas grandes superfícies, uma questão de sorte ou de azar, já que não descortino quais os critérios sanitários e de controlo de qualidade interno que permitem que peixe como o das fotografias seguintes possa continuar à venda.





Peixe à venda numa grande superfície portuguesa (2013)
Quando a presença do gelo não disfarça a incúria. Repare-se nos olhos das xaputas.

Considerando que raramente se encontram peixes comercializados na fase do rigor mortis, podemos afirmar sem grande margem de erro que a maioria do peixe comercializado em Portugal é vendida ao consumidor mais de vinte e quatro horas depois da sua captura. No mínimo, como se pode ver pelas imagens,

Sardinhas "engravatadas":
a presença de sangue junto ao opérculo não é um indicador de frescura, antes de uma idade de pesca de 2 a 3 dias
(Fonte: site da DECO)

Eis o que parece ser uma saudável excepção à norma portuguesa:
um exemplar de cavala apresentado pela Nutrifresco no Peixe em Lisboa 2013
em estado de rigor mortis
Considerando as deficiente condições de conservação que existem a bordo de muitas das embarcações - de que são exemplo as fotografias seguintes, será que o peixe que nos põem à disposição tem condições mínimas para ser consumido?
  
 


Sem seguir toda a linha de comercialização, é difícil responder. No entanto, tem sido desenvolvido desde 1985 um método de verificação visual do estado de conservação / tempo após morte do pescado que pode ser muito útil ao consumidor na decisão de compra.

O QIM (Quality Index Method) baseia-se na observação das alterações de várias características de cada espécie - cheiro, textura, aspecto exterior dos olhos, pele e brânquias (parâmetros como a cor do sangue ou dos filetes, por exemplo, podem também ser considerados na avaliação de determinados produtos), atribuindo-se uma pontuação de 0 a 3 pontos de demérito às alterações face ao que é considerado padrão de frescura. O número de pontos atribuídos a cada uma das características é somado para obter uma pontuação sensorial total, que se designa por “Índice de Qualidade”.

Existem, para uma grande quantidade das espécies exploradas comercialmente na Europa, as respectivas tabelas, desenvolvidas por cientistas de vários institutos de investigação europeus, trabalhando sob os auspícios de QIM Eurofish, estando disponíveis gratuitamente - e isto é muito interessante para o consumidor - aplicações para IPhone e para computador, de fácil compreensão e utilização.

(Fonte: QIM Eurofish)
No que concerne às espécies à venda no território nacional, existem tabelas para as seguintes espécies: bacalhau fresco, biqueirão, camarão, carapau, choco, dourada, enguia, escamudo, goraz-de-pinta, judeu, linguado-branco, linguado-legítimo, peixe-espada-branco, peixe-espada-preto, pescada-branca, polvo, pota, pregado, robalo, rodovalho, salmão, sarda, sardinha, solha, truta-arco-íris.

No que respeita ao pescado congelado existem tabelas QIM para bacalhau e filetes de bacalhau congelados e para pescada congelada (Merluccius capensis e Merluccius paradoxus), eviscerada e sem cabeça.

É fazer o download e começar a aprender... e a infelizmente comprovar a falta de qualidade que muito do melhor peixe do mundo apresenta quando comercializado em muitos dos pontos de venda deste país.

Gostava tanto que me demonstrassem estar errado.

Para quem quiser aprofundar:

QIM Eurofish - http://www.qim-eurofish.com

AVALIAÇÃO DE PESCADO CONGELADO NO POSTO DE INSPECÇÃO FRONTEIRIÇO DO PORTO DE LEIXÕES, Ana Patrícia Oliveira Novais Ribeiro, Tese de Mestrado, Univ. Católica, 2012

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