Culinary Arts 2.06 - Tempestiva bonança enganadora


Depois de ingredientes da alta cozinha clássica - e porque, nem fígado, nem orçamento, nem expectativas, permitem a repetição, com frequência acelerada, de folies como a da semana anterior - uma reflexão sobre cozinhas populares.

O que são elementos nobres? Matérias primas que conjugam rarefacção, surpresa, complexidade. O elevado preço costuma ser atributo. O ar circunspecto, também. Às vezes o fingimento, outras vezes a alarvidade, umas quantas, a incompreensão.

Divago e aspiro. Muitas vezes, deveriam ser consumidos longe dos olhares colectivos, em secretas mesas de amigos, cúmplices, desvairadamente gulosos. (Penso na última ceia de Miterrand: o alquebrado César da esquerda francesa, no final da sua batalha com o cancro, cedendo à gulodice de infância, dizendo nada aos costumes, degustando terminalmente os amados e super-defendidos ortolans)

Perante a aristocrática pré-inacessibilidade de muitos (relembro: "antigamente, gastrónomo era o que tinha dinheiro para beber champagne e comer caviar"), será pertinente a questão - para quantos estará disponível todo o prazer da mesa?

Para todos. Evoco Leonardo: como a pintura para o artista, o prazer à mesa é cosa mentale.

É um sofisma, mas explico. Muito mais que os special one eventualmente utilizados, o que torna cada vivência à mesa uma experiência referente e reverencial é a nossa disponibilidade para sermos conquistados, é a capacidade das preparações para estabelecer cumplicidades com as nossas memórias emotivas, sensoriais. Cosa mentale, portanto. E essa capacidade, cria-a o cozinheiro, desencantando em cada matéria-prima as relações, as evocações, as profundas qualidades.

Depois do grand seigneur foie, lugar à filigrana dos dias comuns. Filigrana, também ourivesaria...


SURURU

O sururu brasileiro tanto pode referir-se ao molusco comum no Nordeste, familiar próximo do mexilhão europeu, como a uma confusão, zaragata, familiar próxima da nossa caldeirada. Foi, pois, sob este signo duplamente culinário que se começou, um Brasil evocado de todas as maneiras, da lima à farofa disponibilizada em pratinho lateral, do picante portáil em pétalas de pimenta ao aroma nordestino que, ainda hoje, consigo evocar.


ASA...

E RABO

Ou como é possível fazer, de um apêndice vilipendiado, uma prova de gulodice comparável à da barriga. O camarão, é um pormenor de acentuação. Rimou e soube bem.


BACALHAU E FEIJÕES

Num bacalhau cozinhado sem mácula, onde a macieza das lascas apreciou a rudeza do feijão e o pendor marítimo foi acentuado pelos sururus nacionais, que mais fazer senão fechar os olhos, suspirar e, lentamente, mastigar?

TALASSAS E PATINHA

(Olhei para o ovo e uma voz insidiosa sussurrou-me, lá do meu fundo: isto não vai correr bem. Errada voz, que já deveria saber melhor: grande ovo, apesar do seu ar de todos os dias, a gema só ligeiramente cozinhada, a clara sem traço de exagero na coagulação.)

Pelo nome, chegaram-me ecos das convulsões da Primeira República, quando os monárquicos ainda tinham esperança no reviralho, o reclamante do trono ainda pertencia ao lado liberal da família, e um talassa ainda causava mais mal-estar nos círculos progressistas que um ex-secretário-geral caído em desgraça em congresso de aclamação do novo líder. Paralelamente, construíam as doceiras beirãs uma versão nacional das belgas waffles (que tanto sucesso desfrutam nos EUA e, usando o canal do imperialismo mediático, no mundo globalizado). E foi nesta cama que deitaram a patinha do título, casamento de sucesso, em complementares texturas visuais e gostativas.


FRITOS E FRITOS

Ásia evocada, Europa presente, numa sobremesa de excessos que, apesar da ligeira escorregadela, satisfez os gulosos de serviço.

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