Culinary Arts 2.13 - E aos costumes disse nada

(Foto reproduzida com uma vénia aos seus autores, integrados na equipa da série, True Blood)
E se um conhecido lhe propuser uma refeição com um menu de 5 pratos de "sangue"... aceite. Principalmente se o conhecido for o colectivo encimado pelo Chefe Nuno Diniz e completado pela turma de Culinary Arts que dirige na Escola De Hotelaria e Turismo de Lisboa.


Foi o almoço de despedida. Ou o primeiro almoço do resto das suas vidas - profissionais.

O tema poderia ser uma alusão aos Blood, Sweat & Tears que entusiasmaram muita da juventude da transição dos anos 60/70 do século passado: esta vida é como os interruptores do Herman, umas vezes para cima, outras para baixo ("What comes up must come down"), bonito tema de reflexão para quem aspira ao mediático estrelato, a ter restaurantes apinhados e estrelas e pellegrinis na lapela. Música de fusão, gastronomia de fusão, clientes perfeitamente fusionados com a inventiva, e as brincadeiras gustativas e texturais a bailarem na boca.




Tema tão vermelho que merecia ser encimado pelo "Vermelho" do Rothko: como ele, um vermelho só homogéneo para uma abordagem descuidada, das que da vida apenas retiram maniqueísmos, oposições básicas bom/mau, gosto/odeio, branco/preto. Não. Cinquenta tons de vermelho, pelo menos, nestas propostas de gente de cabeça limpa, que propõe e aceita desafios, desconstruções da norma, provocações à mulher do próximo e ao próximo marido, os dois casados, solteiros ou desconhecidos entre si.


A começar pelo pormenor dos aperitivos propostos, a inescapável Bloody Mary e o sanguíneo sumo de laranja... sanguínea.



Motivo continuado nas fatias de pão, corpo e sangue unidos numa só comunhão com manteiga ferrugenta de azeite, agradável importação da longínqua Vila Nova de Famalicão dos grandes Cunha, Dalila e Renato.

É curioso como a nossa mente trabalha: teria passado do subconsciente do autor esta explícita evocação da Última Ceia?



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Como, a propósito do sangue, se compõe um prato que é uma exposição do muito de bom que o país profundo tem para oferecer.

No aconcheco da trouxa brassical de uma chartreuse, dois enchidos montalegrinos:


Chartreuse de Sangueira e Chouriço de Abóbora, Salada de Almeirão com Feijão Frade e vinagreta de Frutos Vermelhos, Salpicão de Montalegre e Bolacha em Massa Folhada com Puré de Abóbora, Tahini e Laranja
Sangueira de Barroso - Montalegre (IGP), oficialmente caracterizada como "um enchido fumado à base de carne, gordura e sangue de porco da raça bisara ou produto do cruzamento desta raça, desde que com 50% de sangue bísaro, e pão de trigo, constituído por pasta mole e seca na qual se podem aperceber pedaços de carne e tendo com invólucro tripa fina de porco" e condimentada com "sal, alho, vinho tinto ou branco de Trás-os-Montes, colorau picante (regionalmente designado por "pimento") e ou colorau doce (também conhecido por "pimentão"), salsa, cebola e azeite de Trás - os -Montes"

Chouriço de abóbora (IGP), coisa mai´linda!, "enchido fumado à base de carne e gordura de porco da raça bisara ou produto de cruzamento desta raça, desde que com 50% de sangue bísaro, e abóbora escorrida, constituído por pasta mole e seca na qual se podem aperceber pedaços de tamanho reduzido (carnes desfiadas), cheio em tripa grossa de porco", condimentadas as carnes e gorduras com " sal, alho, vinho tinto ou branco, colorau picante (regionalmente designado por "pimento") e colorau doce (também conhecido por "pimentão")". Destaque para a abóbora utilizada, produzida localmente e da variedade Porqueira. e localmente conhecida por botelha ou cabaça.

Na salada, o Almeirão, provavelmente a alma mater do prato, descoberta recente do Chefe em Mação, mas que também é endógeno nos concelhos vizinhos, designadamente Proença-a-Nova. Da mesma família das alfaces, mas mais próximo da chicória, precisa de ser socado para perder o amargor, para aí se revelar inspirador.


Finalmente, o Salpicão de Barroso-Montalegre (IGP), "enchido fumado à base de carne de porco da
raça bisara ou produto do cruzamento desta raça, desde que com 50% de sangue bísaro, cheio em tripa grossa de porco, com formato recto, cilíndrico", condimentado com "sal, alho, vinho tinto ou branco, colorau picante (regionalmente designado por "pimento") e ou colorau doce (também conhecido por "pimentão")". Carne do lombo ou lombinho, refira-se.

Fígado de Vitela, Compota de Cebola, Batata e Abóbora salteadas, Maionese de Chouriça de Montalegre
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Segundo prato: em terra de iscas, quem tem um naco é rei. Fígado fatiado pela medida grande, grelhado mal passado.

Em sangue.

Minúcias nos acompanhamentos, batata e abóbora em brunesa, pétalas de rábano.

Estranhamente delicioso, o fígado, assim, a enganar expectativas que o esperavam encortiçado. Discreto sabor do fumo, a apimentar o paladar. Brutalista, quase Baconiano.

("It´s not my work that is violent; it's life itself that is violent")

(Francis Bacon - Screaming)
Sangue, sangue fonte de vida, sangue fonte de horror numa cidade povoada de medidas higiénicas que nos afastam da ligação ao mundo real, cru e duro, de vida e morte. Áspero.

3
A lampreia será o "peixe" mais amado e odiado deste país. Convenhamos: é um bicho feio, quer para quem mantém tudo o que lembre cobras a uma sanitária distância, como para quem tenha um sentido estético mínimo, ou para quem, desde pequeno tenha tido a sua dose cultural de ficção científica visual ou de filmes da Hammer.



Feio, mas inspiração e fornecedor de uma incomparável criação que visita Portugal de Norte a Sul, entre Janeiro e Março: o arroz de lampreia, contraponto em pescado às admiráveis cabidelas.

Textura que se aprende a gostar, com a cartilagem a tornar-nos indecisos entre a recusa e o aceitar do jogo com uma "espinha" que, afinal, é comestível.

Neste arroz, a demonstração de como é possível o uso do vinagre sem o tornar dominante, a constatação do aveludado que o molho pode ser. E o aroma...



Arroz de lampreia
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Para não repetir, uma cabidela sem arroz, exercício virtuoso de construção de sabor e textura, matriz de linhas várias que só não foi perfeita porque a galinha se revelou madura. Mas que prato! O sangue que, no caso da lampreia, foi pujança, exigência de atenção, aqui foi subtileza, suporte e discrição. Presença subliminar, Maquievel em casa do Medici Lourenzo, dando o Norte mas deixando o seu príncipe governar.
Cabidela de galinha

5
Finalmente, a sobremesa. Partilho as palavras com que Nuno Diniz conta a história do prato na sua página FB: "O Francisco Siopa tinha-me falado de umas filhoses de sangue de porco. Eu aproveitei a ideia e dei a sugestão de se fazer um gelado de hibisco. Sugeri também um crocante com Pistachios e um dos alunos (a Rita Mariana?) disse que fazia umas línguas de veado. Entretanto decidimos fazer um creme inglês e como tinhamos maçãs, escolhemos colocá-las em vácuo máximo, com chá de hibisco (para mudar a côr e parcialmente, o sabor)... A "areia" foi também ideia dos alunos e finalmente fizemos um sangue falso, que foi colocado, com uma seringa em frente dos clientes."


Sábio exemplo de como um locus horrendus encerra um jardim das delícias, de como ainda, na cozinha tradicional portuguesa, há quase segredos à nossa espera, prato que encerrou um ciclo e que anuncia uma vida profissional que, espero, traga a cada um destes agora profissionais, tanta satisfação como a que cada um destes pratos me proporcionou.



Sangue, Vida.

Comentários

Anónimo disse…
Uma imensa pena minha, esta a de não ter condições para me candidatar sequer a tal curso, agora que fui forçado a deixar a docência e com enorme prazer abracei a profissão de cozinheiro.

João Isidro Sanona

No último ano..