Culinary Arts 3.03 - Alcoutim nesta mesa


Na trilogia natural que cabe à província algarvia - litoral, barrocal e serra - onde as características edafoclimáticas de cada uma moldaram as gentes e a sua vivência, à região serrana caberá o quinhão mais desconhecido, menos turístico mas não menos interessante, não menos pujante de propostas, não menos pronta a encantar quem pelos caminhos e povoados se predispuser a descobrir, a conhecer, a saborear.

Dois dedos de rio, a correr perpendiculares à costa, serviram, durante séculos, de ligação e troca às gentes que, tão cercas, tão longe eram. Serviram, que o assoreamento progressivo para a História enviou grandezas e misérias de urbes outrora fortes, outrora pujantes, outrora Nomes.  Perdeu-se o caminho que não o sustento: junto aos frutos da terra, mantiveram-se, no consumo das populações marginais, os filhos do rio.

Serrana e fluvial é a dupla herança gastronómica que Alcoutim recebeu, no dia em que as circunstâncias fortemente aleatórias do passado se reuniram na definição dos seus limites concelhios. Caça - principalmente a perdiz vermelha e o coelho bravo -, porco e borrego, enguias, peixe de rio; figos, amêndoas; o mel.

Dia de Alcoutim, na Escola. Luzida e justamente orgulhosa comitiva alcouteneja rumou a Lisboa para saborear o que as mãos aprendizes elaboraram a partir de alguns dos mais endógenos produtos que o concelho tem para oferecer.

Menu de estalo, como soíam apregoar os antigos, a prometer olhares gulosos e sorrisos cúmplices, entre os cúmplices de mais uma refeição cheia.

Mais uma vez, um exercício combinatório entre a memória e o presente, entre os sabores de sempre e o olhar contemporâneo.

Coelho assado, Pão de Martim Longo e Queijo de Cabra

Dizem as tristes línguas que os espanhóis vêm comprar o leite de cabra à serra algarvia para o transformarem em queijo e o voltarem a revender com a sua marca. Desconheço a veracidade da queixa mas reconheço a necessidade de, antes de nos perdermos em road shows mundiais, apurarmos a produção regional, a sua consolidação, de modo a fixar populações, a preservarmos a cultura ancestral, a manter a identidade e a auto-estima sempre necessárias a nossa continuidade como nação. O queijo de cabra é justamente reconhecido como um dos ex-libris da serra algarvia. Que permaneça assim.

Perto da nomeada do seu vizinho a Norte, o pão algarvio faz figura menor a nível nacional, ainda que injustamente. O de Martim Longo (ou Martinlongo) é figura célebre nos produtos do concelho, estando à venda, diariamente, em estabelecimentos de Lisboa a todo o Algarve. A maior produtora (Serralgarve), efectua igualmente a moagem, de mistura de trigo de várias proveniências, de modo a assegurar a ausência de aditivos, produzindo igualmente o fermento.

O começo foi assim destes produtos quotidianos que, à frugalidade, respondem com a beleza do sabor. Um láparo apanhado em corrida, grelhado nas brasas e desfiado com paciência, cumeava a trilogia. Prometia, a aventura alcouteneja.




Ervilhas e Enchidos de Porco Alentejano

Produção concelhia, de empresa neófita e hiperactiva, a Feito no Zambujal, a ser a personagem principal.

(Fonte: Empresa)

 Um ovo cozido a baixa temperatura, um caldo que seria mais conduto, forra de estômago acabado de acordar para jornada agrícola, oloroso, a encher narinas, muito pão para ensopar.



Alhada de Enguias do Guadiana

Tradição fluvial que corre o país, o consumo da engia ou eiró ou iró, aqui reencarnada na tradicional e mais litorânea alhada. Saborosas enguias.



Ensopado de Borrego de Churra Algarvia

Estão continuamente estas serras acompanhadas de grandes manadas de vacas, fermosos fatos de cabras, muitas varas de porcos, com seus pastores e rafeiros, tudo o qual dá grande alegria aos caminheiros e os recreia com leite e queijo, se o tempo lho dá a eles. […] Destas serras se passa infinito gado pera Castela, atravessando o rio Guadiana pera Alcoutim posto que os Reis de Portugal tem defeso isto com grandes penas”.(1) Assim escrevia, no século XVI, Frei João de São José, prior no Convento de Nossa Senhora da Graça, em Tavira. Outros tempos, de rivalidades guerreiras e riqueza serrana, ambas, no presente, muito esbatidas.

A raça Churra Algarvia, da qual, hoje, alguns tentam evitar a extinção, é ainda a predominante na produção local.

Ao ensopado, apetece-me iconoclasticamente chamar uma açorda (alentejana) incrementada: o pão é frito, o caldo é rico e o borrego rouba a cena ao pão, aqui coadjuvante e contraponto. Exagero e agrego o que, provavelmente, pouco tem de ser equiparado mas uso a comparação para relembrar as aproximações entre duas regiões (representadas pelos vizinhos concelhos de Mértola e Alcoutim) que, de tão cercanas, comungam algumas tradições gastronómicas.

Pronto. Passada a divagação, festejem os olhos a imagem, imaginando o sabor:




Pudim de Mel e Filhós com Sorvete de Flor de Sabugueiro

Dois doces emblemáticos - o pudim de mel e azeite e as filhós de joelho (se non è joelho... è bene trovato)- com o sorvete a abençoar a conjunção.

Foi festa extra na casa, perto que está a Páscoa para justificar a quem precise.

Pequenos apontamentos, a revelarem atenção, sentido estético, capacidade de pensar visualmente o prato: o azul da flor a contrariar a tendência tonal do conjunto e a marcar um centro; os três pequenos círculos, a indicar uma ordem, na quase abstracção de formas dos restantes elementos.


Visitemos Alcoutim.

(1) - Em "CICLO DE “PASSEIOS E COMERES DA DIETA MEDITERRÂNICA” NO MUSEU MUNICIPAL DE TAVIRA: PASSEIO “PELOS CAMINHOS DA OVELHA CHURRA ALGARVIA”" - https://museusdoalgarve.wordpress.com/2014/11/04/ciclo-de-passeios-e-comeres-da-dieta-mediterranica-no-museu-municipal-de-tavira-passeio-pelos-caminhos-da-ovelha-churra-algarvia/

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