The Old House, lábios titilantes


A China é, em termos de área, o quarto maior país do mundo. As suas fronteiras estendem-se do Pacífico aos interiores desérticos da Ásia Central, da tundra siberiana às florestas tropicais do sudeste asiático. Partir do princípio que a cozinha chinesa é uma entidade homogénea, passível de ser assim denominada, é ganhar o direito para muitas desilusões, tal a diversidade de matérias primas e técnicas disponíveis e utilizadas, de propostas, de visões, de concepções de uma refeição.

No presente, o país reconhece como "clássica" a divisão da sua cozinha em 8 grandes escolas culinárias, correspondentes a igual número de províncias (às quais se acrescentam as cozinhas das regiões mais extremas, mais abertas à influência externa e as das grandes ilhas - Hainan, mas também a hoje independente Taiwan). Sichuan (literalmente, "quatro rios"), a maior província e uma das mais populosas, é uma delas. Está situada no interior do país, nos cursos superior e médio do rio Yangtzé e contém duas regiões muito diferenciadas, a leste uma zona de elevada produção agrícola, densamente povoada, a oeste uma zona montanhosa, pouco habitada. Dotada de uma enorme riqueza de recursos naturais, a sua gastronomia baseia-se na diversidade das matérias primas disponíveis, dos cereais, oleaginosas, frutas, verdura, bambús, cogumelos existentes nas planícies, aos animais selvagens como os ursos e os cervídeos, nas montanhas e aos diversos peixes de rio.

(Fonte: Wikipedia)
Sobre o nível elevado da cozinha de Sichuan existem documentos históricos e poemas com mais de mil anos. Cozinha de síntese, fruto do aperfeiçoamento de preparações populares, ditadas pela disponibilidade, bem como de pratos trazidos pelos cozinheiros de altos funcionários vindos de fora para se radicarem nas importantes cidades de Chengdu e Chongqin, foi considerada uma das escolas mais importantes do país.

Uma definição rápida, mas redutora, da cozinha de Sichuan poderia ser "picante e plena de especiarias". Fuchsia Dunlop, uma escritora gastronómica britânica que na província estudou, e que será, provavelmente, a sua maior divulgadora ocidental, avança uma mais interessante explicação: "O que realmente distingue a cozinha de Sichuan é a sua mestria nas artes do sabor (flavour). Os chefs de Sichuan deleitam-se na combinação da variedade de gostos básicos de modo a criar deslumbrantes fu he wei (gostos/flavours complexos). Um banquete bem orquestrado titilará o vosso palato de todos os modos concebíveis: despertará as vossas papilas gustativas através do uso judicioso do óleo de chilli, estimulará a vossa língua e os vossos lábios com a pimenta de Sichuan, acariciará o vosso palato com uma doçura picante, electrizar-vos-à com chilis fritos, apaziguar-vos-à com acri-doce, acalmará  o vosso espírito com uma sopa tonificada. É uma apaixonante viagem de montanha-russa. São tantos e tão variados fu he wei da cozinha de Sichuan que se poderiam mudar as palavras de Samuel Johnson e dizer"se um homem está cansado da cozinha de Sichuan, está cansado da vida".

Em Lisboa, depois de várias décadas iniciais de habituação à cozinha do país (e é muito curioso que, nos mais de quatrocentos anos de administração portuguesa, nunca se tenha implantado, por aqui, a cozinha macaense, simultaneamente regional e com grande influência portuguesa), com restaurantes "genéricos" (ou seja, sem especial predisposição para defender e manter uma cozinha regional específica), começam a aparecer projectos mais especializados numa região, como, por exemplo os Yum Cha de Oeiras e, agora, Lisboa e o Dim Sum, igualmente em Oeiras, com a sua entusiasmante oferta de variados dim sum.

Chegou agora a vez da cozinha de Sichuan, com a abertura, em Julho, do The Old House, restaurante que, no dizer dos seus responsáveis, tem como objectivo a divulgação da cultura da província. Curiosidade, muita curiosidade. O meu prato favorito, quase arrancado a ferros da disponibilidade de algumas das cada-vez-menos-clandestinas casas de comer da cidade, é o Mapo Doufu - uma provocadora junção da textura macia do tofu com um molho picante e saboroso que me deixa a boca insuflada -, prato icónico desta província, pelo que, assim que tomei conhecimento da sua abertura e, principalmente, após recomendação entusiástica de uma grande amiga e maior senhora do mundo gastronómico português - a Paulina Mata -, me lá desloquei, na primeira oportunidade.


Junto ao rio, de fachada de vidro a revelar um interior cuidado, pontuado pelo vermelho dos candeeiros pendentes dos tectos, sem o kitsch que é usual (e entediantemente igual) na maioria dos restaurantes seus conterrâneos, aparece como uma boa promessa. O interior, com dois andares e vários espaços, da sala em open space aos recantos para dois ou quatro convivas e ainda os reservados para grupos mínimos de oito, confirma a primeira impressão. Profusão de madeiras claras, dominância da tradicional cerâmica azul e branca, um espaço que dispõe bem, sem ser impositivo, gritante. Acredito que, seguindo a tradição, uma perfeita atenção às indicações do feng chui terá sido observada.





Deixando o bem amado Mapo para outra visita, optámos por pratos desconhecidos, como primeira introdução genuína a esta cozinha. Pratos "frios", entradas, pratos "quentes", pratos de arroz, seguindo também algumas das sugestões do serviço de sala. Registe-se a preocupação de quem nos serviu em nos elucidar (e, para isso, previamente aprender, uma vez que a maioria do serviço é assegurado por nossos conterrâneos), o que se saúda.


A "Salada de Alga Chinesa" (开胃木耳 / Kāiwèi mù'ěr ) é um prato de uma textura macia, onde se nota a presença dos chillies e, penso, da pimenta de Sichuan. Ao contrário de pratos com algas comidos anteriormente, não apresentava uma textura crocante, o que estranhei, Acontece que mù'ěr (os dois últimos sinogramas) se pode traduzir como "madeira+orelha" ou, mais especificamente, o cogumelo Auricularia auricula-judaeem, conhecido por Orelha de Judeu (em inglês Wood Ear ou Jew's Ear) e que, de facto, tem uma aparência que se pode assemelhar à a de algumas algas, pelo que este será uma salada de cogumelos Orelha de Judeu e não de algas. Mistério eventualmente esclarecido e, se assim for, recomenda-se a substituição do nome do prato. Prato que, definitivamente, se recomenda.



Este "Tofu seco desfiado" / Qianzhang (拌千张) feito a partir das folhas de tofu (conhecidas por "mil folhas" - qian zhang, coalhada colocada entre panos e depois pressionada) de uma aparência que evoca os tagliatelle, provou ser a boa surpresa que a Paulina me tinha anunciado. Menos cremosos que os cubos de tofu de outros pratos, especiosos, a incentivar a gula de os ir picando com os kuaizi / pauzinhos.




Já os Xiao Long Bao ( 小笼包) causaram-me alguma perplexidade por os julgar originários de Cantão (consulta bibliográfica depois da visita revelou-me serem prato de Xangai). Na lembrança, tenho uns fantásticos, provados na primeira vez que fomos ao Yum Cha de Oeiras (e que, visitas posteriores não confirmaram), com um recheio misto, sólido e líquido (em que o líquido aparece com o aumento da temperatura, decorrente da cozedura em vapor, da gelatina do caldo, adicionada com o recheio), verdadeiramente assombrosos. Estes souberam muito bem, ainda que sem o líquido, Não encontrei referências à sua existência na culinária da província, o que, dada a exiguidade de fontes que tenho disponíveis, não quer dizer tudo...



Prato com pergaminhos na região, a Carne de Porco com dupla confecção / Huíguōròu (回锅肉), é a barriga de porco primeiro cozida em água, depois esfriada, fatiada e frita em banha. É temperada com uma pasta feita à base de soja fermentada, denominada Tianmianjiang, uma pasta de chilli de nominada Doubanjiang, acrescentando-se alho francês. É doce e picante, é extremamente saboroso, acrescentando ao que já é uma imparável tentação - a barriga de porco - uma combinação de camadas de gostos que se vai alternando na boca e torna a experiência - se para ela estivermos disponíveis e atentos - inesquecível.




Inesquecível de absolutamente deliciosa foi igualmente a Beringela com molho de alho / Yú xiāng qiézi (鱼香茄子). Este parece ser o tipo de preparação que usa um tipo de tempero conhecido por (à falta de melhor tradução) fragância de peixe - o qual, apesar do nome, nada tem de sabor de peixe, antes relembra o tipo de tempero usado no passado em pratos de peixe. Chillies, alho, gengibre, cebolinho, molho de soja e vinagre, congregam, mais uma vez, uma combinação de camadas  de sabor - no caso ácido-doce, salgado, pungente -, apresentando a beringela a uma luz totalmente nova, uma textura melosa que atrai como um doce, que provoca com o salgado, que desafia com a acidez, que desperta com o picante. Imperdível.





Finalmente, e em águas mais calmas - e mais familiares, pelo menos em termos de gosto - o Arroz de Soja / Jiàngyóu chǎofàn (酱油炒饭), serviu de finalizador, a albufeira depois dos rápidos, descanso, reflexão, sorriso beatífico. Arroz cozido, ligeiramente frito em óleo ao qual se adiciona um pouco de soja, com alguns vegetais, porto seguro.

Vale a pena esta Casa Antiga? Vale a alegria. Divulga e satisfaz, abre horizontes, sacia apetite.

Só uma pequena chamada de atenção para algum entusiasmo excessivo no tratamento com os clientes: simpatia não é familiaridade e alguns temas são, para bem da harmonia entre clientes e restaurante, absolutamente tabus (futebol e política, pelo menos). De resto, parabéns pela vontade de explicar, a qual pode ser prolongada na melhor denominação (e, se estiver a interpretar mal, agradeço correcção) dos pratos.

Aguardo com expectativa o alargamento da carta a qual, segundo informação prestada, passará a oferecer, a partir do Outono, o Huaguo da região - "Hotpot" ou, como é habitualmente reconhecido entre nós, "Fondue chinês".

The Old House
Rua da Pimenta, 9, Parque das Nações, Lisboa
Tel.: 21 896 90 75

2ª a Domingo
12:00 às 15:00, 19:00 às 23:00

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