Maria Pia: Uma açorda memorável


Do trágico destino dos Bragança pouco se importou o país seu contemporâneo, embalado pelas promessas do melhor mundo republicano, perdida a memória da glória restauradora que lhes deu a coroa e mal digeridas a perda da riqueza setecentista e a fuga envergonhada para o Brasil à frente da invasão napoleónica. Pobre família cheia das desgraças humanas, com pergaminhos maiores do que os do seu país, de talentos outros que os da sua condução. Literatos, artistas, cientistas, tudo menos reis, tudo menos inspiradores do povo. De pouco valeu a injecção de sangue germânico, anulada pelo desaparecimento total do ramo legitimado, por doença ou regicídio, em três gerações.< Três locais guardam uma marca forte da sua presença, em especial das últimas gerações reinantes: Vila Viçosa, sede do Ducado, que conserva um extraordinário Paço, último local de dormida do Rei D. Carlos e do Príncipe herdeiro D. Luís Filipe;

(Fonte: Pinterest, Francisco Braz Teixeira)
o Palácio da Ajuda, em Lisboa, também ele ingloriamente terminado, com a vergonha acrescida da chaga definitivamente provisória que ostenta no inacabado lado poente, incerta e cruel homenagem à dinastia que encerrou a história monárquica de Portugal. Espaço que vale a pena visitar demoradamente, dele se tendo vindo a ocupar, com empenho e arte e no que concerne à História gastronómica que nele se encerra, Virgílio Nogueiro Gomes;

Planta do projecto original do palácio da Ajuda. A negro, a parte construída
(Fonte: Palácio Nacional da Ajuda)
Cascais e a cidadela, bastião de veraneio da família real.

D. Carlos e entourage na praia de Cascais
(Fonte: http://monarquiaportuguesa.blogs.sapo.pt/)
É precisamente nesta vila, frente à baía que tantas vezes viu zarpar o iate real Amélia IV em viagens oceanográficas comandadas por D. Carlos e entalado entre a marina e a cidadela que está instalado o restaurante Maria Pia, homenagem à infeliz rainha que sobreviveu ao filho e ao neto. Como chefe executivo oficia Pedro Mendes, autor do pouco divulgado e muito interessante O Renascer da Bolota, cozinheiro de méritos firmados na direcção de restaurantes do Algarve e do Alentejo (e um dos participantes da festa plurimanual que foi o É Touro Lindo!).

Curiosamente, na vida de Pedro Mendes pontificam igualmente as outras duas cidades Bragantinas citadas: para além de lisboeta, o primeiro grande restaurante que dirigiu e no qual alcançou apreciado renome foi o Narcissus Fernandesii do hotel Alentejo Marmoris em Vila Viçosa, onde a sua cozinha que soube cruzar com habilidade e sucesso o essencial da cozinha regional alentejana com uma visão autoral muito própria, deixou saudades.

Recentemente tive oportunidade de conjugar um dos últimos dias de calor outonal com uma refeição no Maria Pia.

Cones de robalo (cone creme); tártaro de atum (cone verde); salmão marinado (cone preto); caranguejo (cone vermelho)
Lá confirmei os pergaminhos que o passado outorgou ao Chefe - cuidado na apresentação e composição, equilíbrio de sabores e texturas, criatividade nos usos dados a matérias-primas tradicionais.


Como esta ostra, de maresia acentuada pela cama de algas e com a graça da espuma,


ou o aparente abandono deste prato, leve carpaccio de bacalhau, com uma harmonia visual que descansa o olhar e, ironicamente, não prepara para a intensidade dos sabores,

Carpaccio de bacalhau
ou ainda a absoluta beleza da composição do prato de atum, de vermelhos a lembrar o Carpaccio pintor e que denota uma sensibilidade visual que para além de ser pouco habitual ver-se por cá, consegue, na boca, continuar a mesma agradabilidade quer através do jogo de texturas quer da conjugação dos vários sabores.

Atum braseado com Creme de beterraba e Legumes salteados
Mas prato que me levou a alturas raras, que deixou uma impressão indelével na memória dos grandes pratos provados este ano, prato que tem origens tão simples e tão tradicionais que magoa até agora nunca me ter passado pela boca criado por outras mãos, é esta açorda negra de marisco, tão funda, tão múltipla de estímulos, tão portuguesa, tão pessoal, tão vibrante, que me faltam palavras para a descrever. Visualmente é um desafio de referências: o seu negro lembra o escuro medieval do fundo de algumas pinturas que todo o mistério continha e de onde emergia o sagrado; o vermelho, o contraponto da esperança, o sabor alheio e independente mas que tudo explica. O choco frito é o ponto final da perspectiva, o sabor destino, a textura que se abre e só é possível pela não textura da açorda.

Prato tão devastador para quem se deixe levar pela imaginação como para sibaritas mais terra a terra, prato síntese da gastronomia regional sulista, prato que nos explica e nos excita. Vão a Cascais e provem-no perante o mar, numa tarde descansada, exigindo um silêncio cúmplice. Saboreiem-no. Saboreiem as vossas sensações. Saboreiem-se.

Açorda negra de marisco com Choco frito
E a refeição terminou com mais um prato demonstrativo da qualidade de composição do seu autor. Mais uma vez, a beleza da simplicidade, o jogo de enganos cromático em que amarelo e branco evocam um ovo estrelado que não existe, a anarquia cuidadosamente encenada, a terminar em apoteose na boca, nos sabores e nas texturas.

Pavlova desconstruída?
Não cabem desgostos nesta reencarnação da triste rainha...

Restaurante Maria Pia
Passeio Dona Maria Pia, 2750-310 Cascais, Portugal
Telefone: 214 835 348 ● 926 438 053

Horário:
Terça a Domingo, 12:00 – 23:00

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