Cadernos de um Enófito (3): A Baga, da Revolução à Troika



Neste tempo de imediatismos - de chatos imediatismos, pouca paciência e nula visão das qualidades do tempo -, no mundo do enoconsumismo (recuso-me a trazer para aqui a enofilia, essa rarefeita arte de amar e compreender um vinho na sua complexidade, humores e sentimentos), "velho" é uma obscenidade que se começa a empregar com crescente regularidade em vinhos tranquilos cujo ano de engarrafamento tenha uma distância de mais de cinco anos do presente. Nos brancos, então, a zona de tolerância reduz-se quase até ao ano anterior, enraizada que está a lenda da sua má convivência com o passar do tempo.

Culpa de muitos produtores que, qual cão perseguindo a cauda, julgam ser a pretensa vontade do público que lhes dita a corrida, sem se darem conta que, com um bocadinho mais de coragem (eu sei que já é precisa coragem para se ser produtor vinícola) e visão de futuro, poderiam chegar mais longe, ao Shangri-la do mundo vínico onde as uvas são vendidas com margem justa e as garrafas a preços de corar... de satisfação.

Culpa de opinion makers que se satisfazem com a facilidade e a facilidade ensinam.

Culpa de quem no vinho apenas vê uma maneira fácil para a eliminação dos filtros sociais, o limpar da boca ou a aprovação dos seus pares.

Deixemo-nos disso e permitamos que a vida fale connosco através dos anos de silencioso evoluir que os vinhos - feitos sem restrições do imediatismo e preservados com a paciência dos sábios - têm para nos contar.

Quando provamos um vinho "experiente", para além das evoluções que procuramos descobrir - o aligeiramento dos aromas primários, a progressão dos secundários, a erupção dos terciários (sim, foi um pequeno interlúdio em que me armei ao entendido) - e que lá estarão se as soubermos sentir, podemos alcançar essa recompensa mais intangível que é a evocação das nossas memórias (e das memórias do mundo) do conjunto de anos que mediou entre o seu aparecimento e o presente. Quais foram os nossos momentos mais relevantes nesses anos? O que fazíamos quando mãos desconhecidas velavam pelo crescimento das uvas, pela sua colheita, pela fermentação do mosto, pela escolha dos depósitos, pelo engarrafamento, pela distribuição, pelo armazenamento?

Que viagem no passado como bónus para uma experiência já de si entusiasmante (desenganem-se: a experiência da idade é sempre superior ao vigor da juventude...), que emoção acrescida.

Bom.

A Hello Summer Wine Party é um evento organizado pela revista Paixão Pelo Vinho e cuja terceira edição ocorreu na passada semana nos jardins do Hotel Marriott, em Lisboa. Foi um sucesso, como as anteriores, com quase um milhar de participantes a descobrir ou confirmar os vinhos presentes oriundos de 25 produtores e três provas especiais.

Osvaldo Amado, enólogo de muitas ca(u)sas, o guia da prova e autor de alguns dos Bairradas Intemporais apresentados
Uma das provas teve como sujeitos alguns do monovarietais Baga produzidos a partir de 1975 pela Adega Cooperativa de Cantanhede. Conduzida pelo experiente e ultracompetente enólogo Osvaldo Amado, autor de algumas das preciosidades provadas, foi uma viagem pelo tempo do vinho, pelos anteriores modos de o construir, por um tempo que já mudou e nos deixou de herança estes registos. Note-se (e uma vez que é um composto em evolução) - não uma imagem do que os seus contemporâneos terão provado, antes a maturação dessa realidade. Como os amigos que perdemos do convívio durante dez, trinta anos e voltamos a rever: os mesmos mas outros, desconhecidos reconhecíveis.



A Baga, filha menor do nosso gosto médio, orgulhosa, difícil de se oferecer, é uma das estrelas do universo vínico português. Sendo a casta tinta mais cultivada na Bairrada, são as suas características que moldam os vinhos tintos (e alguns espumantes) tradicionais da região: ricos em taninos, com forte adstringência, carregados de cor, ricos em ácidos, a precisarem de tempo para desenvolver as suas características, designadamente o apaziguamento parcial dos taninos - muito contra os vinhos "redondos", "consensuais", "agradáveis", que o "mercado" tanto preza.

Outros dias virão, que o mundo gira e avança...

E quanto aos vinhos provados? Oh.

Um grande OH!, feito de sorrisos enternecidos e de satisfação (um pouco como o que nos enchem a cara depois do reencontro com o primeiro amor, correspondido e que a vida afastou sem amarguras).

1. BAGA 1975

Talvez o maior paradoxo deste ano seja a loucura colectiva que o país viveu (revolução, contra-revolução, manifestações, greve do Governo, cerco à Assembleia Constituinte, ocupações, nacionalizações, ataques a sedes de partidos e a congressos dos mesmos, bombas, para só citar parcialmente o dia-a-dia) e a extrema qualidade da maior parte da produção vinícola na maior parte das regiões.

O Baga que iniciou esta viagem é boa prova dessa qualidade, reflectida no modo como dignamente evoluiu. Tom ruby com bastantes acastanhados, sinal dos quarenta e dois anos que já tem, mas ainda com pujança, um aroma ainda intenso, convidativo, na boca algum fumo, chocolate, final com acidez moderada. Taninos moderados, como seria de esperar, mas muito agradáveis, a deixar uma textura na boca. Que maravilha.



2.BAGA 1980

Onde estavam em 1980? Já por cá andavam, a aprender a serem portugueses? 1980 foi o ano das mortes traumáticas de Sá Carneiro, primeiro-ministro e de John Lennon, imaginethere'snoheaven.
Foi igualmente um grande ano vinícola na Bairrada, onde se produziram grandes vinhos de guarda, como o provado, já com um tom ruby acastanhado, um pouco mais denso que o anterior, grandes aromas - terciários -, na boca algum melaço. Um vinho na força da idade, com muito tempo de vida para quem tiver paciência.

Baga 1980: pelo menos mais 20 anos de vida,
segundo Osvaldo Amado, tendo a precaução de mudar a rolha

3. BAGA 1995


Quinze anos mais novo, o Baga de 1995 apresenta maior intensidade de vermelhos, com raros tons acastanhados. Com grande untuosidade, taninos polidos mas presentes, um vinho para levar ao altar, que conjuga passado e futuro, e que se bate bem com uma carne vermelha, por exemplo, uma costeleta de vitela na grelha.

(Detestei 1995, ano de perdas, de desafios, de rupturas com cicatrizes que levaram anos a deixar de incomodar. Mas é assim a vida, assim somos nós, polidos aqui e ali, perdendo impetuosidades, ganhando novas qualidades.)

4. BAGA 1997


Vinte anos. No nariz, intenso, uma sugestão de fumo, na boca alguma adstringência, pó de chocolate, ténues notas de tosta. Ainda que diferente, a mesma qualidade do irmão anterior, um pouco mais de "juventude".

5. BAGA 2005


Século XXI. Belíssimas férias, de carro até à Alemanha. Incêndios brutais no país, memória de uma fotografia marcante de um bombeiro em desespero num fundo de chamas.

Enquanto isso, iniciava-se a produção deste Baga, que resiste com boa estrutura, boa intensidade, a bordejar a delicadeza

6. BAGA 2009 FORAL DE CANTANHEDE


O mais recente Foral de Cantanhede. Vinho da nova geração, de cor intensa, granada com raros tons acastanhados, na boca notas balsâmicas ainda pequenas, caramelo, fruta, exuberância mas também elegância. Um vinho ainda a crescer, a prometer uma vida de acompanhamento a quem quiser comprar agora umas caixas e o ir encontrando, ano após ano. De acordo com o seu autor, Osvaldo Amado, quando se aproximar da idade que o Baga 1975 hoje tem (quarenta anos) apresentará ainda maior qualidade face aos cuidados actuais postos na produção.

Eis um vinho que relativiza o tempo, que nos faz repensar o significado da sua passagem e da velocidade da sua passagem. Oito anos, já? E é como só agora começasse a pensar na sua alforria.


7. BAGA 2011


De tão novo parece aos seus autores (enólogo e adega) que ainda não se considera colocá-lo à venda este ano.

Violeta profundo, bom nariz, de taninos bem presentes como é apanágio da casta, adstringência pouco domada, um vinho que ainda grita, um Pavarotti ainda a estudar, a querer mostrar a potência da voz e assim encantar a plateia, mas que a que falta a maturidade dos anos.

Este é "o" Baga com quem aprendi a amar a região e a torná-la a minha favorita, com as influências do terroir bem assinaladas - frescura da proximidade do mar, as características da casta bem acentuadas pelo solo e pelo saber do homem. Uma dureza que esconde um coração de ouro.

Para quem não gosta de lidar só com certezas, conforto e ideias feitas.

O sete vinhos provados. Primeiro plano, do lado esquerdo, o Baga 1975 até, no sentido do ponteiro do relógio, o seu irmão mais novo, Baga de 2011. Veja-se - à falta de se provar, a evolução da cor e dos tons, bem como a sua densidade.

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